Pacificamente Desajustada

Originalmente postado em 17.11.2019

No meu finado, perdido e, até o dado momento, irrecuperável blog eu mencionei por diversas vezes o estado do migrante de não ser daqui nem de lá. Meu pai costumava me dizer quando criança que isso traria uma permanente insatisfação. Hoje ele mesmo migrou — mais de uma vez — e eu me percebi alinhada e confortável com o sentimento sou-de-lugar-nenhum.

o lado de lá daqui

Tenho uma ligação forte com alguns lugares específicos, uns conhecidos outros ainda não. Minha crendice/espiritualidade me convence que a conexão vem de outros planos enquanto minha inadequação e inquietação se sustentam onde quer que eu vá. E independente da conexão, eu amo viajar e poder ver gente e culturas diferentes do que sei.

Quem me conhece bem sabe que tenho dificuldade com algumas dualidades e fonemas específicos, aprendo devagar e quando falo misturo esquerda com direita, antes com depois, água com égua, sem vergonhice com coragem e beber com comer; opostos ou similares, nenhum termo será salvo. Feio, bonito, errado, certo, devagar, lento, limpo e sujo ganham significados únicos dentro de 6 bilhões de cabeças, moldados por seus respectivos repertórios.

Eu, business-bruxa e executiva-podicrê, que dou risada falando sério e choro de alegria, passei os últimos dias em trânsito entre reuniões de trabalho, relatórios importantes (pra quem?), uma saudade do tamanho do planeta e reencontros mágicos, somando pontinhos e criando conexões pra minha vidinha.

Encontrei uma prima incrível que não via há pelo menos 2 décadas, reencontrei meu best friend da época da faculdade e padrinho de casamento, não vejo minha filha há mais de 3 semanas (e ela está sapeca e plena visitando a família), conheci pessoas que deram faces à um parceiro de trabalho de mais de 2 anos, em breve eu pisarei no quarto país em 30 dias e vejo claramente mais um turbilhão de trabalho pela frente. Estou feliz, triste, animada, estressada? Não, sim, plenamente, certamente e de forma alguma. E tudo bem; o confuso me soa realização pessoal. O estresse de trabalho incluído, com a lindeza de saber que é só trabalho.

Por uma série de motivos e acontecimentos somados à terapia e treinamentos tive a graça de entender que meus sentimentos não são quem eu sou. Tenho raros picos de alegria, normalmente em shows de rock ou num parque debaixo do sol com minha família. No restante do tempo eu aceito, confio, entrego e agradeço, o resultado é paz.

Sair dessa linha de raciocínio as vezes acontece, errar faz parte do aprendizado dá graça à vida. Vai ver meu finado Blog morreu pra ninguém mais precisar ler o que não era mais eu.

Desculpa se disse bobagem, é que não sou daqui (marinheiro só).

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Percepções redefinidas

Aprendi a ler antes dos 4 anos brincando com as cartilhas da minha irmã. Tinha pavor da alfabetização precoce porque a minha aparentemente me gerou, basicamente, estresse. Tenho diversas memórias na infância que hoje entendo como cobranças desnecessárias, pois eu era tida como uma promessa de “sucesso”; e simplesmente sou uma pessoa bem mediana que questiona os o que chamam por aí de sucesso.

Pois bem, minha filha com 1 ano e meio brincava de ler a marca na lona da piscina “pi-shi-na vo-vô”, passou a perguntar o que tava escrito em tudo que queria e memorizou as letras pouco antes de fazer 2, isso sem estímulo intencional à alfabetização. Luiza memorizou sei lá quantas logomarcas porque apontava pra faixada das lojas e perguntava “que mercado é esse?”, eu só respondia. Em seguida a gente tomava o ônibus e ela ia berrando “olha o Lidl! Olha o Rewe! Olha a DM! O banco do papai! Aquela moça tem uma sacola do Edeka!”, Eu gargalhava com um mix de roxa-de-vergonha e morta-de-orgulho daquele bebê de fralda apresentando as lojas pelo caminho.

Comecei a dar uma surtadinha basica e, nas conversas com amigos, eu entendi que não responder quando ela pergunta é um desrespeito ao interesse dela e que eventuais malefícios viriam da imposição do aprendizado, eventualmente também da cobrança de uma genialidade por parte dela.

Agora estamos chegando a 3 anos e meio, ela pega o lápis de cor e escreve a letra A ou S, ela pega o meu telefone quando toca e já me avisa quem tá ligando e vez por outra me traz umas pérolas, tipo dizer que na capa do livro tá escrito Margô (o sobrenome do autor é Ca’margo’) e dizer que o Terno “é com a mesma letra da Lanterna”. Eu acho graça, sinto um orgulhinho e não tento impulsionar mais, seguindo o ritmo da curiosidade dela.

Na Alemanha não há alfabetização antes dos 5-6 anos, quando as crianças vão pra escola, ela tá na Kita e o dia é preenchido com passeios, música, histórias e brincadeiras. Mesmo assim se eu falar no verão “in Sommer” Ela me diz “mamãe, é im Sommer, com M assim” fazendo um M de libra, que não faço ideia com quem ela tá aprendendo, haha.

Segue o baile…  Eu tava com uma lista de compras na mão e a Luiza pediu pra escrever. Eu falei “tá, escreve seu nome”, isso foi há umas três semanas. Não é que ela escreveu? Ela tem 3,5 anos, saiu um Z zoado e conhecendo minha cria, sei que ela se embananou no A por conta disso. Eu fiquei embasbacada sem querer fazer muito alarde pra não inibí-la.

Semanas depois eu disse pra ela que minha amiga que estava nos visitando também amava as letras e sugeri que ela escrevesse o nome de novo. Ela, bem serelepe, pegou o giz de cera e mandou esse L “pequenininho pequenininho” o U assim do lado e assim por diante, narrando a tarefa. No fim ela perguntou, “mas mamãe isso aqui não é um C?” apontando pro Z dela. Eu disse que o Z é bem difícil de fazer mesmo, mas que o dela estava excelente pra idade dela, mostrei com o giz vermelho como tinha sim um Z ali.

Luiza me vira do avesso e redefiniu minhas certezas. E eu, que ainda brigo comigo mesma pra definir minhas levezas, vou levando esses cutucões e torcendo pra seguirmos nosso caminho tranquilamente, pacientemente, naturalmente… E assim ela continuar a me ensinar.

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Quase todo dia

Eu não vou hoje reclamar que não estou com minha mãe, porque sou dessas chatas que acredita que dia das mães é uma data comercial propensa a nos causar decepções. Foco no lado bom, minha mama está com a mamãe dela! <3

Eu sinto muita falta da minha mãe quando a Luiza dança. Também quando vou à feiras de antiguidades, ou quando passo por um jardim bonito, quando quero ir pra piscina, quando estou escolhendo roupa pra ir pro trabalho, quando tento não matar minhas plantas, quando meu marido não quer passear, quando faço uma gambiarra, quando tem comida demais na geladeira, quando tem comida de menos na geladeira, quando meu estômago tá atacado – ou tenho qualquer outro problema de saúde, quando ponho cenoura na farofa, quando vejo uma vitrine bonita, quando vejo molho de pimenta no mercado, quando demoro 50 minutos pra fazer um pingo de comida só pra mim, quando invento qualquer coisa legal e sei que ela ia gostar, quando arrumo meu armário, quando marido faz comida gostosa em casa, quando junto os amigos pra passar o dia papeando, às quintas-feiras, às sextas, quando os parques estão cheios, quando chove e quando eu sujo uma roupa muito chata de lavar.

Só.

Te amo, mamadi. Espero pacientemente e amorosamente pelos nossos encontros.

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Perolinhas

3 anos e 3 meses. Uma metralhadora de conceitos emaranhados no que ela ouve por aí. Muito “certo e errado” e um perfilzinho analítico e detalhista querendo argumentar.

…….

Depois do banho perguntei se Luiza queria ficar mais uns minutinhos brincando na banheira. Quantos?
– Dez!
Saí, voltei, conversei com ela, fui na cozinha, voltei, falei com ela de novo, e de repente voltei sem falar nada e ela faz uma cara seríssima:
– Não passou dez ainda!! Eu tava contando!!
– Ah, tudo bem, devo ter me distraído. Quantos minutos faltam, filha?
– Vinte!
…………………………

– Filha, quer ver o Pinocchio antes de dormir?
– Sim! A Tanis da minha Kita fala Quinóquio. Ela fala errado, Pinocchio não é com Q, é com P!
– Que fofa!
– É mamãe, ela fala errado. Quinóquio. É errado.
– É porque ela é pequena, filha. Quando você era pequenininha e chamava o elefante de Tutu não era errado, era só seu jeito de falar. Você tava aprendendo ainda.
– Mas mamãe, Quinóquio é errado – gesticulando muito.
– Você acha, filha? E Pelevisão?
– Pelevisão é certo!

…………………………

— Mamãe, o que é isso branco aqui no seu cabelo?
— Isso é meu cabelo mesmo, são os cabelos brancos que você me deu.
— eu acho que eu não te dei não, eu acho que eles estavam aí mesmo.
…………………………

Botando pijama na miúda e conversando sobre as coisas que ela não precisa fazer:
— você já é craque, filha. A mamãe foi aprender essas coisas grande já. Sabe quando?
— hum? (Olhar muito interessado)
— com quase 30 anos.
— Trinta mamãe? Igual minutos?

*Dessa vez eu gargalhei*

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Planejamento ou fome

Tava ontem falando pra Claudia Ramos que, nesse primeiro ano de Berlim, a minha única reclamação era o breu. Os dias estão ficando rapidamente mais curtos e daqui a pouco a gente tem menos de 7 horas corridas de luz do sol. Mas a vida é cíclica, o outono acaba e o inverno chega aumentando os dias pouco a pouco… uma coisa linda de se ver e de se aceitar. Aprendizado, superação, sascoisatudo.
Daí hoje é domingo. Praticamente nada no comércio abre (com excessão de restaurantes ou pontos longe-da-minha-casa que tem mercado caso haja uma emergência). E eu não tenho mais polvilho e tô louca de saudade do pão de queijo que acabou essa semana.
Na Alemanha ou você aprende a se planejar ou você aprende a se planejar.
Bom dia.

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Págens

Luiza um dia começou a chamar as páginas do livro de “págens”. Eu corrigi. Desde então ela fala página pra tudo que tá afim. Se bem conheço minha cria, deve ter uma lógica, mas ainda nao captei.

“Mamãe, essa é a página do metrô”, enquanto anda pela estacão.
“Mamãe olha aqui essa página” vendo o rótulo de um produto.
“essa é a página da piscina” olhando a placa da entrada.

A confusão permanece, porque ela acha que a língua com a qual nos comunicamos se chama Alemanha e se refere ao alemão que ela fala na Kita como Deutsch. Acho justo, mas fico meio perdida se corrijo ou não – principalmente porque já tentei e não adiantou.

Ideias?

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Kaputt geworden

Luiza, quase 32 meses, com o bilinguismo batendo forte.

Sobe no sofá e diz “Ich versuche nochmal” (eu tento de novo)
depois de dez tentativas ela quase toma um tombo e fala repetidamente “ich xxxxxx kaputt, ich xxxxxx kaputt, ich xxxxxx kaputt!”
Sem entender eu falo:
– Filha, fala em Alemanha – pois ela chama alemão de Deutsch e Português de Alemanha.
– Eu CAPUTEI! (eu capotei)

E mais associações maravilhosas estão por vir… haha

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Pedro Voa Souto

Eu não convivi com Pedro. Embora ele tenha almoçado na minha casa, tenha tocado por um curto período com meu marido, eu estava numa fase conturbada, delicada e não consegui interagir com ele. Porém testemunhei a admiração enorme que Fabricio tinha por aquele garoto.

Um monstro em talento, uma enciclopédia do rock (deixando nossas enciclopédias favoritas boquiabertas), um sorriso doce. Quando ele me foi apresentado eu não acreditei que aquele menino era tudo aquilo que ouvia dizer, não o associei às histórias que ouvi, levei uns 20 minutos depois do encontro pra entender que aquele Pedro era “o” Pedro. Era 2011 ou 2012, não sei com exatidão, mas ele era ainda mais jovem, com cara de criança mesmo, rs.

Os anos se passaram, e como a maternidade veio eu perdi o fio da meada no rock. Mas via os vídeos no Facebook, acompanho à distância a genialidade dos garotos brasilenses fazendo jus ao rótulo da cidade de “berço do rock”. É de uma energia incrível, a forma como a cultura vem se desenvolvendo – independente, forte, psicodélica, inspirada e louca.

foto de Artur Dias

E Pedro representa essa energia, com um grande peso em carisma, amabilidade e o puta talento (com o perdão do palavrão pela falta de um termo maior). Ele estava lá. Não está mais – não neste palco, não neste plano.

Eu creio nos planos divinos, acredito que não há acaso e que jovens que fazem a passagem “cedo” cumpriram seu papel. Mas isso não me impediu de estar abalada. Uso todos os argumentos possíveis pra tentar acalmar meu marido, mas enquanto falo o que penso meu coração chora junto.

Me vem flashes dos amigos sorridentes, falando do Pedro com um amor e admiração profundos, dos vídeos de assisti há menos de um mês da banda em que ele tocava e me engasgo. Quando soube que ele estava mal eu jamais acreditei que este seria o desfecho.

Tenho raiva por ter aprendido a sofrer com a morte. Acredito que é uma passagem, que pra morrer basta estar vivo. Se houvesse distinção de idade, caráter e talento o Pedro estaria aqui.

Aos amigos em comum, aos familiares dele … que o tempo conforte seus corações. E que ele esteja em paz. Aqui em casa seguimos em luto, porém seguindo.

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Natgeo Berlim

Numa manhã comum, fomos levar a pequenina de bike pro KiTa. Fomos os dois, pois no sistema deles a cada semana uma das crianças leva o café da manhã, portanto a cada 10 semanas somos nós. Fui, então, levando as compras e Fabrício foi levando a pequena.

Saindo de lá, flagramos um Corvo atacando, matando, depenando e comendo um pardal. Anteontem eu tinha visto um outro corvo comendo um pombo que estava recém morto e pra mim foi suficientemente perturbador. O de ontem foi um pouco mais intenso.

Em seguida, voltando pra casa, passamos em frente a um parque no quarteirão de baixo e vi uma raposa. Gritei pro Fabricio olhar e, não sei se por isso ou pelo movimento das bicicletas, ela recuou e ficou olhando a gente passar.

Voltei pra casa quase tão eufórica quanto a vez que estava em Pipa vi um golfinho pelo qual eu não estava procurando nem esperando, hahaha. Quase esqueci aquele corvo…

É muita emoção na vida do imigrante, e tudo antes das 9h00.

Natgeo Berlin

E a aventura continua.

PS: uma vez eu vi um carcará atacando um joao de barro e destruindo a casinha pra alcançá-lo. Também não achei bonito.

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toc toc toc

Eu já disse que nossa chegada tem sido suave?

Gente, nenhuma expatriação é serena. Nem as mais suaves. Ela tem sido relativamente branda, agraciada pelo humor da Luiza que ama “todo mundo” (segundo ela mesma) e por diversos anjos sem asas que Deus nos enviou em forma de amigos. Mas a gente estranha, né? Acho que é isso, deve ser um estranhamento.

Eu sempre agradeço pelos desafios que tenho pela frente. Costumo dizer que foco num problema de médio prazo de solução pra ir direcionando minha energia de forma otimizada e ir calculando o tempo das coisas. Mas na verdade é só um jeito de diminuir a ansiedade, já que a vida é essa sequência doida de coisas a serem resolvidas com breves momentos de relaxamento entre eles.

E falando em ansiedade, na semana passada eu dei uma piradinha. Foram 3 dias de muita ansiedade coroados por TOC. Não foi nem perto das grandes crises que já tive na vida – pudera, depois de tanto tempo, esforço, tratamento, auto conhecimento, conexão espiritual… as coisas mudam. Amém.

De um instante pra outro voltei a sentir aqueles impasses desconexos, necessidade de ordenar as coisas, cores e posições, incômodo com as texturas e os cheiros e meus dias ficaram repletos de pequenos rituais com intuito de ordem, porém causando um caos absoluto. A angústia de ter sintomas dos quais me livrei há tanto tempo misturada à certeza de que isso não me pertence e um vestígio de medo daquilo não ir embora. Mas foi. Ufa.

Lembrei das amigas dizendo que quando “a ficha caísse” eu poderia me sentir abalada. Mas sendo isto uma certeza, eu acredito que estou bem preparada pra instabilidade, pra saudade, pros choros, pra reclamar do frio… A mudança de continente está sendo guiada por um sentimento de plenitude e pela vontade do desafio. Não apenas pelo bom, mas pela aceitação de que o difícil não é ruim.

Enfim, ainda consternada eu conversei com algumas outras mães que saíram do país e que também passam pelos desafios que tenho encontrado, falei com meu amado primo que é psiquiatra, fiz listas mentais e físicas, resolvi fazer o avesso do que meu instinto me pedia… e dois dias depois o incômodo cessou.

Tenho uma leve sensação de que pode ter sido algo que me surgiu por um motivo hormonal, dentre outros tantos motivos. E mesmo sem ter a menor idéia da razão eu tenho a certeza de que essa assombração de transtorno me apareceu pra eu me cuidar. Pra ter cautela, buscar saúde e ser empática com as pessoas que piram longe de casa. Porque nossa casa quem identifica é o coração – e o meu identificou essa daqui. Só que colo de mãe, casa de vó e risada com os amigos são minha casa, tanto quanto esse chão que piso.

A distância as vezes se transforma em sintomas ingratos. Que demorem a voltar e sejam cada vez mais breves.

E que a temporada de visitas comece logo!

fonte: http://www.hypeness.com.br/2015/05/artista-mostra-em-12-retratos-emocionantes-a-luta-diaria-que-trava-entre-a-depressao-e-a-ansiedade/
“Um copo d’água não é pesado. Você quase não percebe quando precisa segurar um. Mas e se você não pudesse esvaziá-lo ou colocá-lo na mesa? E se você precisasse segurar seu peso por dias… meses… anos? O peso não muda, mas o fardo sim. Em um certo ponto, você não consegue se lembrar o quão leve ele era. Às vezes é necessário dar tudo de si para fingir que ele não está lá. E às vezes, tudo o que você precisa fazer é deixá-lo cair.”

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