Nunca amei o Natal. Como cristã questionadora eu mudei pra cá ligadona na celebração do solstício e das tradições herdadas do norte, então aceitei quando vim que o Natal faria mais sentido. O que mais amo, porém, como bruxa tradicionalista é criar meu próprios rituais cheios de detalhes familiares dando sentido pra mim às coisas.
Assim como carregamos as nozes e o pinheiro cheio de neve pros trópicos eu resolvi trazer pra ceia na Europa o pão de queijo com pernil (aqui adaptado com qualquer carne de porco). Eu já estive em Berlim por pelo menos 4 Natais e a cada ano a ceia mineira tá ficando mais elaborada. Esse ano teve tutu de feijão.
Eu não tenho nenhuma lembrança de natal que fosse fácil e tranquilo. Os dias que antecediam o Natal me davam a possibilidade de encontrar primos e amigos em Minas Gerais. Como tanto meu pai quanto minha mãe são da mesma cidade, eu e a minha irmã atendíamos a ceia na casa da nossa bisavó e depois íamos pra família do meu pai, onde tinha festa e bebedeira até tarde. Já adolescentes ainda íamos pro terceiro turno na discoteca da cidade. Eu gostava do agito, mas o Natal mesmo nunca me encantou.
Teve também uma vez, salvo engano em 2002, que passei as festas com a família de um ex namorado em Campinas. E ali, meus amigos, foi a primeira vez que eu percebi, reparei e provei uma rabanada. Achei super estranho que não tinha tutu, senti falta de verdade. Foi uma experiência bem interessante, ver como famílias (menos intensas?) celebram o Natal. Tenho doces lembranças de toda a viagem, em especial o fato de que fomos umas 15 pessoas assistir Star Wars no cinema e todos amaram o filme, mas a Cintia e o vovô dormiram :} haha. Acho que passar o primeiro natal longe dos pais, e no meu caso também longe da bisavó, tem um efeito parecido com a criança que começa a dormir na casa dos amigos e ver como são as dinâmicas familiares do lado de fora da porta de casa. Depois temos aquela fase de convivência obsessiva com os amigos na adolescência e de certa forma chegamos a ‘substituir’ a família original por uma mais alinhada com nossas idéias – talvez menos assustadora ou punitivista? Quem nunca apelidou ou elogiou alguma amiga com título de “mãe” e teve irmãos fictícios no círculo social? Santa crise, que saudade.
Por falar em Saudade, há 5 anos eu estava no Brasil às vésperas do Natal e encontrei uma amiga muito querida que vinha passando por diversas mudanças e ressignificações na vida. Sandra sempre foi gentil, inteligente, generosa e me buscou na casa dos pais do meu então marido para passarmos uma tarde juntas. O filho dela estava em vias de se mudar para Berlim e eu já estava animada em tê-los no meu círculo de família escolhida. Dois dias depois liguei na noite de natal para agradecer pelo encontro e desejar boas festas, seu marido atendeu à ligação e me informou que Sandra tinha falecido horas antes. Seu filho infelizmente não veio para Berlim, e Sandra não me visitou como planejamos, porém um colar que ela me presenteou na ocasião de uma outra visita eu guardo no meu altar.
Ano passado estive com minha família no Natal, a bisa não está mais fisicamente aqui desde 2016. Minha saúde estava descendo a ladeira de cara no chão, e eu achando que aquele quadro não tinha como piorar, sabia de nada, inocente. A alegria e entusiasmo da família piorava a dor de uma crise forte e me deixava atordoada. A noite em si foi difícil, mas o almocinho do dia 25 foi delicioso, em todos os seus sentidos.
Venho considerando o meu atual estado – essa lenta recuperação concomitante à busca de tratamento – algo como um renascimento, dos tantos que vivi até agora. Um deles foi definitivamente determinado pela morte-vida que se cruzaram naquele momento tão natural; uma mulher se torna mãe e tenta equilibrar, com a nova rotina prática, a desengonçada seleção e adaptação dos minúsculos pedaços que resultam daquele debulhar de criação, cria, criadores e o Criador, mais o que se criou e o que será que será. O caos resultou numa migração pra um país onde não tínhamos vínculos – o que pode ser considerado um novo renascimento, mas pode também ser apenas uma fase da fase em que aprendo a ser mãe de Luizoca – em andamento ad eternum.
Nessa reinvenção de mim o instinto considerou a saudade do tutu, o apreço pela própria cultura, a vontade de me gabar pela capacidade de fazer pão de queijo com a chancela de ser mineira de nascida (quando quem protagonizava o debulhar era minha mãe), a necessidade de celebrar a vida / honrar a morte e a vontade de receber gente linda em casa. O natal vai pouco a pouco tomando forma, sempre com amigos que aqui se tornaram uma família com quem tenho grande afinidade, não sei se pelos traumas de migração ou especificidades que nos trouxeram pra mesma cidade desse planeta :)
Até as 13:00 do dia 24.12.2022 ainda não tinha me batido banzo mas fui dormir com o peito apertado quando as pessoas foram embora, feliz e triste. Saudade constante por aqui ultimamente só da minha mama e de quando eu tinha ousadas ambições na vida. Aceitei que não há vida nem Natal sem saudade, e a saudade é uma benção composta de amor que nos dá suporte pra continuar indo adiante, na velocidade que for.
Feliz Natal à todos! (dia 26 porque na Alemanha celebrar dia 24 é queimar a largada, mas hoje ainda é Natal)
E que 2023 seja ao lado da família escolhida, original ou não, presencial ou não.