Diário da Dor Invisível – Neurodivergência, Caos e Identidade

Capitulo 8 – aviso de gatilho: pensamentos suicidas

Diagnósticos, diagnósticos. O que é pesonalidade e o que é síndrome? Qual seria o limite entre a doença-tem-que-tratar e a norma?

Na verdade vivemos hoje num tempo onde o diagnóstico é a norma – salvo engano {Deus me livre de ter certeza} ouvi isso de um Psicanalista do qual admiro muito o trabalho, Henrique Vicentini. Quando tive a chance de me apresentar pra ele e um grupo de estudos e mencionei que vinha colecionando diagnósticos desde a infecção da COVID-19 em 2020.

(Houve um tempo que eu achava que ter TDAH era sinal dos tempos. Muita informação, essa internet dando acesso ao tudo e ao máximo das inexistências, procriando pseudiciência e exaurindo o ser humano com o mínimo de pensamento crítico, nos aproximando superficialmente, aumentando as distâncias e diminuindo a auto estima sem regular humildade… Perai, fui longe demais.)

Minhas lembranças de infância são muito específicas e tem muito mais observações dos meus pensamentos do que do ambiente em si. Eu tinha uma necessidade de não errar, então era mais facil ser low profile. O inicio da minha adolescência foi pesado, me lembro de situações muito constrangedoras causadas pelo meu hábito de não me atentar ao que se passava no meu entorno, e fazer coisas sem perceber, tentar ajustar/corrigir e depois tentar suprimir o erro mudando a perspectiva. Daí descobri que podia ser engraçada.

Enquanto minha irmã dizia que eu era “diferentinha” e minha mãe se ofendia mandando ela não falar assim de mim, me tornei uma excelente profissional, {modéstia a parte} pois ajustar, corrigir, mudar a perspectiva é sucesso no Business. 

Outobro de 2020, dias antes do teste positivo

{Aliás, boa parte dos meus sintomas eu transformei em diferenciais, com os devidos métodos (mecanismos de defesa?). Daí chegou a gripezinha, anos depois conhecida por matar sinapses.}

Após vivenciar um declive constante na minha saúde por cerca de 20 meses eu mal conseguia ter consciência do que eu era/sou. Passei o verão de 2022 em Berlim com o mínimo de energia, sem entender boa parte do que se passava ao meu redor, exausta e sem capacidade de interpretação ou analítica. A minha terapeuta, na ocasião, me perguntava se eu conseguia meditar, e eu tinha dificuldade de explicar pra ela como não conseguia pensar. O pouco que acontecia na minha cabeça estava na ordem da urgência. 

O famigerado fundo do poço: eu entendi que precisava baixar a pressão e a resistência, mas assim acabei encontrando escuridão (o urso). O último episódio depressivo que tive antes da Covid me deixava a grosso modo em dois estados: gritando ou dormindo. Dessa vez, porém, com a fadiga, eu estava quase sempre dormindo, sempre confusa e não me via capaz de assumir nenhuma responsabilidade. Tive dias em que não conseguia sair de casa, com medo de entrar em colapso. Passava dias sentindo uma tristeza profunda, outros dias não sentia coisa alguma. Foi mais ou menos aí que eu comecei a pesquisar sobre suicídio assistido, e com pouca pesquisa achei melhor conversar com meu médico.

Long story short – eu mudei a perspectiva, mantive os tratamentos alopáticos, aumentamos a dosagem do que foi preciso, e procurei uma amiga querida que é uma deusa da Ayurveda antes de precisar mergulhar em mais remédios. Nos primeiros dias de dieta e massagens eu fiquei três dias sem crises da enxaqueca e as coisas foram mudando. {Manter o movimento, confiar no processo, o que será será, e as coisas são o que são, quando devem ser}

A partir daí fui sentindo diferenças mínimas que aumentavam passinho por passinho minha qualidade de vida. Em setembro de 2022, eu fiz uma viagem que foi bem menos difícil do que outra que fiz em julho – quando me senti “o morto muito louco”. Daí em outubro eu percebi que passei mais tempo de pé do que deitada (esse foi meu grande e celebrado avanço), porém as crises ainda estavam na faixa de 20 dias por mês, o que me permitiu começar o tratamento pra enxaqueca com anticorpos monoclonais pelo plano de saúde.

Julho de 2022 – não se enganem, eu tava bem pior que na foto anterior – é invisível

No início de novembro tomei a primeira injeção deste tratamento, e a partir daí a minha saúde passou a fazer avanços menos sutis. Fui capaz de buscar ajuda psicológica e emocional, falar ao telefone, elaborar um cronograma (que ainda não foi executado, mas oxalá, jajá será), fazer planos que me trariam alguma sede de vida {miaguarde Brasil!}. Passei a fazer algumas caminhadas, já que os esportes que me agradam mesmo eu ainda não consigo fazer.

Na sequência, entre um baque e outro (fui demitida, falaremos sobre), que fui até a Clínica-Dia do ladicasa tentar entender se eles poderiam me ajudar. Coloquei meu nome numa lista de espera e me ligaram em Janeiro. Fiz uma reunião que foi um tipo de triagem pra ver se meu caso era algo que encaixaria no programa da clínica. Eles trabalham com questões psicossomáticas e psiquiátricas e o veredicto foi que SIM, eles poderiam me ajudar.

Entrei em Fevereiro com previsão de um tratamento de 8 semanas. Na segunda semana era ‘dia de Visita’ e pra minha surpresa era a junta médica e os terapeutas sentados em semi círculo pra conversar com o paciente, um por um, sobre o seu caso. Eu entrei naquela sala e senti acolhimento – depois descobri que vários colegas se sentem intimidados e detestam, eu amei. Contei um pouco da minha história e das minhas frustrações, falei sobre a incapacidade que a enxaqueca me causava e explicava que só consegui chegar ali depois de 1 ano e 5 meses – quando 5 tratamentos alopáticos ineficazes foram testatos e toda uma vida adaptada… e na sexta tentativa finalmente consegui alguma autonomia.

{Um beijinho no ombro aqui porque a médica chefe disse que meu alemão era surpreendentemente bom e me disse que eles me ajudariam a voltar pro mercado quando for o momento certo}

Foi nessa clinica, que eu tive o diagnóstico do TDAH positivo e tomamos juntos a decisão de iniciar a medicação. Com três dias de medicação eu entrei no mercado e fiz a compra mais fácil e rápida da vida. Cheguei no caixa e fui olhar a lista, eu tinha pegado tudo. Eu fiquei confusa porque… gente, não é possível! até outro dia eu tava com dificuldade de lembrar dois itens ou escrevia sete itens sendo que dois eram o mesmo, sem perceber. E, pasmem, na segunda semana da medicação eu fiquei *cinco dias* sem ataques – pela primeira vez desde 2021. Ajustamos um outro detalhe e {boom! do nada} eu tive um dia inteiro bastante ativo, sem dor, consegui me livrar de um monte de papel que eu vinha carregando sem entender o que fazer com eles – e dei mais risada do que os seis primeiros meses do ano passado.

Não pensem que eu parei de me perder em uma atividade que na verdade eu enfiei no meio de uma outra, que passei a ter noção do tempo, que minhas palavras ditas têm acurácia e se mantém no idioma pertencente ao momento. Ou que consigo comecar a fazer o almoço e terminar com a receita que era a intenção quando comecei. Não estou tentando tirar meu charme resolver enfiar o funcionamento do meu cérebro na normatividade, e não tem que ser. A questão aqui, no momento, é voltar a ter autonomia depois de uma fase que, além de não ter a noção do tempo eu tinha dificuldade em ler o relógio, assimilar informações básicas ou me lembrar qual era o assunto do qual eu ativamente estava falando após um gole de água ou um latido do cachorro.

A gripezinha, amigos… Ela fez meu sistema nervoso entrar em colapso. E meu cérebro, que já era familiarizado com a enxaqueca, se manteve no ritmo de descarga necessário. A trégua de 5 dias ainda não se repetiu, mas entre o vazio e a(s) tristeza(s) eu venho tendo momentos leves e me familiarizo novamente com meus pensamentos. Às vezes parece que minha cabeça foi lentamente, no curso de um ano pifando mas retomou a atividade no instante que recebeu a ajuda que precisava.

Há um ano eu estava exausta em Kiel, comecando a escrever esse diário, e postei no Instagram que o grande tesouro da vida é a paciência. Ainda preciso esperançar muito… espero que com a dádiva dos últimos avanços façam a espera mais leve e tranquila.

(pêndulo)

Diário da Dor Invisível – A Pausa

Capitulo 7

Vejam bem migs, eu ando sedenta de acolhimento e amor. Me dá a mão aqui, tenta me entender:

É muito difícil, cruel e complicado notar que, por mais que eu tenha melhorado, ainda estou longe de me aproximar do status que já tive. Passei a ser impostora de mim – tendo a convicção que não sou capaz do que já fui. E na priorização de papéis {esses emaranhados de expectativas que te condecoram como o ser que esperam que você seja} – entendi que (surprise surprise) o que me aterra é a maternidade, tal qual a vivo {cheia de questões, inseguranças, dificuldades, traumas e orgulho}. E enquanto me cuido, foco em cuidar da pequena quando ela está comigo.

E trabalho? Atualmente, além do urso (ver posts anteriores), tenho uma deficiência na visão. Comecei a perceber uma perda de visão periférica em maio de 2021, em outubro do mesmo ano eu comecei a notar grandes espaços sem foco e “ondas” com cores, principalmente em superficies claras. Dali em diante eu tenho dias melhores e piores, mas no geral a sensação de ‘strobo’ leve é constante – a não ser que eu use o óculo$ pra fotofobia que comprei com a vaquinha do meu aniversário. Bem, isso me permite sentar em frente à tela do computador por uns minutos diários, mas não me dá nenhum respaldo pra retomar uma carreira no mundo business com computador na cara 8h por dia.

Pois bem… na última segunda-feira conheci um espaço onde eu terei acompanhamento profissional no decorrer das próximas semanas com o objetivo de voltar pros trilhos. Uma das pessoas que conheci nesta clinica me perguntou sobre meu por enquanto trabalho e me lembrei que tive um burn out em 2018. Quando ela me pediu pra especificar eu fui me lembrando de detalhes e, de repente, um resquício da memória de um período de 2-3 meses, quando convivi com uma pessoa horrível me causou um horror tremendo.

Minha boca secou, eu comecei a gaguejar, esqueci as palavras que queria usar e só me veio a angústia de me sentir desrespeitada e apagada em diversos níveis. {Isso, sem o menor exageto, é sintoma de trauma…} em seguida me lembrei que, quando essa pessoa saiu, deixou uma infinidade de erros que eu passei muitos meses corrigindo e lidando com coisas que foram perdas irreparáveis pro projeto pro qual eu trabalhava. Eu me perguntei porque permaneci lá, mas dessa vez foi difícil me convencer que, com todas as situações grotescas que me lembrei naquele par de segundos, permanecer foi a decisão correta.

Nunca fui de chorar o leite derramado. Na época desses episódios eu consegui outras propostas de emprego e, quando acordei com meu empregador que ficaria, não olhei mais pra trás. Nesse momento da vida, porém, eu estou me permitindo 1- dizer que eu faria diferente e 2- me sentir triste pelas decepções que a vida me trouxe. Meu otimismo sempre me levou a olhar o lado bom das coisas e ser grata pelo lugar para onde meus passos me trouxeram, no entanto quero me certificar que a persistência não me bloqueie e que eu saiba viver o luto e seguir em frente – deixando pra trás o que não preciso mais.

Manter o movimento na verdade nunca foi um problema. Não me lembro de parar pra nada, nem por nada. Não tinha consciência do que é descansar até uns poucos meses atrás, quando meu corpo pifou. E agora no meio de mil provas cabais que estou exausta por motivos plausíveis, eu aceitei parar. E, não, eu ainda não consegui.

Mas só por aceitar parar eu sinto vergonha e medo. Medo de não ser respeitada, de ser julgada e de ter saúde o suficiente pra retomar atividades. Vergonha por ter falhado, por não estar confortável de pé , por ter espasmos faciais e usar óculos escuros à noite. E, quando consigo me divertir, eu mesma trato de me julgar e condenar, pois podia ter usado minha energia pra produzir seja-o-que-for.  Os sentimentos vem, eu os dispenso, tentando criar no meu sistema nervoso outro tipo de resposta ao focar na recuperação do meu corpo.

O que me resta é colocar isso em frases, publicar, distribuir e aguardar; esperando que tenhamos mais consciência que nossas necessidades são na verdade imposicoes capitalistas insustentáveis que eu possa inspirar, validar e/ou receber o carinho de alguém. O fato de eu não ter mais dor 24/7 me traz um alivio que se assemelha à esperança. Mas o ânimo é raro, a energia me falta e se eu pensar muito tenho vontade de chorar, por cansaço e medo do que {sabe-se lá o que} há por vir.

Que o novo tratamento melhore tudo mais um bocado e todas as conexões que criarmos nesse meio tempo façam a jornada menos dolorida. E que eu consiga me manter inspirada pelo amor que recebo, da minha pequena e de quem me apoia <3

Os Natais de cá e de lá

Nunca amei o Natal. Como cristã questionadora eu mudei pra cá ligadona na celebração do solstício e das tradições herdadas do norte, então aceitei quando vim que o Natal faria mais sentido. O que mais amo, porém, como bruxa tradicionalista é criar meu próprios rituais cheios de detalhes familiares dando sentido pra mim às coisas.

Assim como carregamos as nozes e o pinheiro cheio de neve pros trópicos eu resolvi trazer pra ceia na Europa o pão de queijo com pernil (aqui adaptado com qualquer carne de porco). Eu já estive em Berlim por pelo menos 4 Natais e a cada ano a ceia mineira tá ficando mais elaborada. Esse ano teve tutu de feijão.

Eu não tenho nenhuma lembrança de natal que fosse fácil e tranquilo. Os dias que antecediam o Natal me davam a possibilidade de encontrar primos e amigos em Minas Gerais. Como tanto meu pai quanto minha mãe são da mesma cidade, eu e a minha irmã atendíamos a ceia na casa da nossa bisavó e depois íamos pra família do meu pai, onde tinha festa e bebedeira até tarde. Já adolescentes ainda íamos pro terceiro turno na discoteca da cidade. Eu gostava do agito, mas o Natal mesmo nunca me encantou.

Teve também uma vez, salvo engano em 2002, que passei as festas com a família de um ex namorado em Campinas. E ali, meus amigos, foi a primeira vez que eu percebi, reparei e provei uma rabanada. Achei super estranho que não tinha tutu, senti falta de verdade. Foi uma experiência bem interessante, ver como famílias (menos intensas?) celebram o Natal. Tenho doces lembranças de toda a viagem, em especial o fato de que fomos umas 15 pessoas assistir Star Wars no cinema e todos amaram o filme, mas a Cintia e o vovô dormiram :} haha. Acho que passar o primeiro natal longe dos pais, e no meu caso também longe da bisavó, tem um efeito parecido com a criança que começa a dormir na casa dos amigos e ver como são as dinâmicas familiares do lado de fora da porta de casa. Depois temos aquela fase de convivência obsessiva com os amigos na adolescência e de certa forma chegamos a ‘substituir’ a família original por uma mais alinhada com nossas idéias – talvez menos assustadora ou punitivista? Quem nunca apelidou ou elogiou alguma amiga com título de “mãe” e teve irmãos fictícios no círculo social? Santa crise, que saudade.

Por falar em Saudade, há 5 anos eu estava no Brasil às vésperas do Natal e encontrei uma amiga muito querida que vinha passando por diversas mudanças e ressignificações na vida. Sandra sempre foi gentil, inteligente, generosa e me buscou na casa dos pais do meu então marido para passarmos uma tarde juntas. O filho dela estava em vias de se mudar para Berlim e eu já estava animada em tê-los no meu círculo de família escolhida. Dois dias depois liguei na noite de natal para agradecer pelo encontro e desejar boas festas, seu marido atendeu à ligação e me informou que Sandra tinha falecido horas antes. Seu filho infelizmente não veio para Berlim, e Sandra não me visitou como planejamos, porém um colar que ela me presenteou na ocasião de uma outra visita eu guardo no meu altar.

Ano passado estive com minha família no Natal, a bisa não está mais fisicamente aqui desde 2016. Minha saúde estava descendo a ladeira de cara no chão, e eu achando que aquele quadro não tinha como piorar, sabia de nada, inocente. A alegria e entusiasmo da família piorava a dor de uma crise forte e me deixava atordoada. A noite em si foi difícil, mas o almocinho do dia 25 foi delicioso, em todos os seus sentidos. 

Venho considerando o meu atual estado – essa lenta recuperação concomitante à busca de tratamento – algo como um renascimento, dos tantos que vivi até agora. Um deles foi definitivamente determinado pela morte-vida que se cruzaram naquele momento tão natural; uma mulher se torna mãe e tenta equilibrar, com a nova rotina prática, a desengonçada seleção e adaptação dos minúsculos pedaços que resultam daquele debulhar de criação, cria, criadores e o Criador, mais o que se criou e o que será que será. O caos resultou numa migração pra um país onde não tínhamos vínculos – o que pode ser considerado um novo renascimento, mas pode também ser apenas uma fase da fase em que aprendo a ser mãe de Luizoca – em andamento ad eternum.

Nessa reinvenção de mim o instinto considerou a saudade do tutu, o apreço pela própria cultura, a vontade de me gabar pela capacidade de fazer pão de queijo com a chancela de ser mineira de nascida (quando quem protagonizava o debulhar era minha mãe), a necessidade de celebrar a vida / honrar a morte e a vontade de receber gente linda em casa. O natal vai pouco a pouco tomando forma, sempre com amigos que aqui se tornaram uma família com quem tenho grande afinidade, não sei se pelos traumas de migração ou especificidades que nos trouxeram pra mesma cidade desse planeta :)

Até as 13:00 do dia 24.12.2022 ainda não tinha me batido banzo mas fui dormir com o peito apertado quando as pessoas foram embora, feliz e triste. Saudade constante por aqui ultimamente só da minha mama e de quando eu tinha ousadas ambições na vida. Aceitei que não há vida nem Natal sem saudade, e a saudade é uma benção composta de amor que nos dá suporte pra continuar indo adiante, na velocidade que for.

Feliz Natal à todos! (dia 26 porque na Alemanha celebrar dia 24 é queimar a largada, mas hoje ainda é Natal)

E que 2023 seja ao lado da família escolhida, original ou não, presencial ou não.

Diários da Dor Invisível – O Urso

Capítulo 6

Falei, falei e falei no texto passado sobre um monte de coisiquinhas, rodeei tanto que deu até uma vertigem aqui. Mas se tem algo que me motiva a escrever é dar nome aos bois, porque só se pode entender e superar aquilo que é definido. 

Eu tenho vivido com um urso. Acordo, olho pro relógio, são 4:00. Tenho energia, mas se eu levantar eu vou sucumbir antes das 10:00. Dormir de novo seria melhor, mas o urso tá com fome. Passo 30 minutos tentando ignorar a fome até que desisto, levanto, tiro a placa dos dentes, pego qualquer coisa fácil de mastigar, de preferência no escuro e de olho fechado pra não despertar totalmente, volto a dormir tentando ignorar que sem a placa eu posso acabar acordando com dor, se é que a dor já não chegou.

O alarme toca às 6:02 – que eu não gosto de usar horários redondos nos meus alarmes – eu devia levantar agora pra dar tempo de escrever o sonho, alongar pra aquecer o corpo, rezar, fazer o chá {saudades café}, mas o urso tá deitado em cima de mim e mal consigo me mover. Tem outro alarme às 6:18, talvez ele saia até lá? Mas não, não sai. Eu consigo girar o urso e me arrastar por baixo dele pra sair da cama, mas só depois do snooze, são 6:23 não dá mais tempo da rotina da manhã. Preciso arrumar o lanche da miúda {semanalmente penso “porque eu não fiz isso no dia anterior? ah é, porque os ingredientes ressecam”}, depois checo algumas vezes se já coloquei na mochila a lancheira e a garrafinha de água. Tenho 5 minutos antes de acordar a Luiza, dá tempo de alongar alguma coisa. Me espreguiço, começo uma sequência de Yoga e no terceiro movimento eu me lembro que não coloquei a água que ferveu dentro da caneca, logo não fiz chá. levanto pra resolver e não termino o exercício. Acordo a meninoca e a partir daí , na cia dela, as coisas acontecem meio que de forma mais automática – mesmo quando a enxaqueca ataca.

O urso típico do meu bairro em Berlim

Enquanto o corpo faz o que precisa ser feito a cabeça tagarela: estou falando demais? Estou falando de menos? Será que essa dor vai aumentar? Dá tempo de sentar pra tomar café junto da minha filha? Mal sentei e já preciso levantar porque esqueci algo! Preciso me vestir, será que ela se sente desconfortável porque a deixo comer sozinha? Será que to falando demais na cabeça dela? Estamos atrasadas? Dá tempo de levar a cachorrinha? Esqueci algo? 

Respiro fundo e relaxo os ombros e a mandíbula. Não há uma só vez que pense em ‘relaxar os ombros’ que eles não estivessem tensos. Recentemente percebi uma sutil tensão também na região interna dos olhos, e toda vez que relaxo essa parte me pergunto se essa tensão não é relevante no gatilho da enxaqueca. Por que é que meu corpo está sempre tenso? E por nossa senhora da bicicletinha, como posso ser capaz de ‘overthink’ meu exercício de relaxamento? 

Eu percebo que se eu pego o celular, nesse reflexo que automatizamos de catar o dito cujo quando nada está acontecendo – o urso me agarra pelo pescoço, escala minhas costas e senta nos meus ombros. Às vezes ele repuxa meus tendões dos pulsos e ombros.

Quando finalmente saio de casa, seja pra levar a Luiza pra escola, pra ir a uma consulta ou pra fisioterapia, o urso que estava até então sentadinho no meu ombro adormece deixando o corpo pesar de uma forma desequilibrada, apoiado na minha cabeça, ombro e braços. E eu sigo caminhando, mas só porque, há não muito tempo, eu parava e voltava pra cama, mas daí o peso do urso me sufocava e o jeito era dormir com a angústia de saber que em algum momento eu tenho que levantar apesar do peso continuar ali. 

Sendo bem honesta, o urso também sobe em cima de mim quando vou arrumar a casa, tomar banho, cozinhar, ler um livro, fazer esporte ou qualquer outra coisa, agradável ou não. Recentemente, porém, o danado parece estar mais desperto, talvez tenha perdido peso. É mais fácil me locomover e consigo bem devagar fazer coisas uma por uma, sem muita ambição {e sem pegar o celular}. 

Resumindo bem, desde que tive o COVID em 2020 eu desenvolvi 1- um problema circulatório ainda sem nome mas similar à síndrome de Raynaud, 2- a piora progressiva agressiva e desgastante da enxaqueca, 3- dificuldades na visão, 4- O tal brain fog com uma falta de concentração que não tá no gibi e a evasão da capacidade de ligar os lé com os cré. Eu que me gabava de resolver problemas complexos hoje em dia desenho palitinhos pra fazer conta de subtrair. Elaborava planilhas e agora eu olho pra elas e parece que tô olhando hieróglifos. 

Essa situação toda atropelando minha vida me rendeu esse urso, que aqui chamam de Depression; no Brasil depressão. Na minha família e na minha vida não é nenhuma novidade, infelizmente. Tive em pelo menos 3 ocasiões uns bichos desses, manifestados em outras formas entre meus 18 e 29 anos. Quanto mais leve fica o urso mais eu consigo me mover e, já que ele não é meu, continuo não o alimentando para ver se ele vai embora logo. Assim como a fase difícil da minha enxaqueca, é uma desagradável visita de quem eu não conseguiria me livrar sozinha; então eu peço ajuda, converso, escrevo, pesquiso, aceito, me acolho, insisto, choro e, se preciso for, eu durmo.

Eu quis reiterar o texto anterior quando bati na tecla no cansaço porque me comprometo com a honestidade do meu discurso, pois o que se escreve lá do fundo, com clareza e verdade, tende a abraçar quem precisava e me trazer abraços de quem me inspira. Eu gostaria de fazer um bota-fora pro urso nos últimos dias de 2022, mas tendo experiência com ursos e sabendo que eu são teimosos; vou me lançar às mandingas de ano novo e prometer me movimentar mais, quem sabe um dia desses eu não volto a me exercitar e ele despenca de cima de mim? :)

Diários da dor Invisível – e outros intemperes

Capítulo 5

Essa semana mencionei em um dos meus encontros meu pleno, constante e intenso cansaço. Tenho evitado reclamar, pois quem não está cansado? A exaustão é tema recorrente em todo o mundo desde o início da pandemia há quase três anos; um tipo de pandemia secundária. E eu me pergunto se estou cansada da maternidade, da migração, do trabalho em línguas que aprendi depois dos 30, da separação, da pandemia ou da própria enxaqueca. A resposta é isso tudo somado ao ano de 2020 que já caminha para sua versão 3.0. 

A realidade é que a doença que desmoronou minha vida no último ano está dando sinais de trégua. Recapitulando; em junho de 2021 achei que fosse uma fase de crises de enxaqueca frequentes, como outras que já me eram conhecidas, na sequência me acostumei e me perdi com tanta dor e medicação, já não tinha clareza da situação. Quando novos sintomas surgiram comecei a ver especialistas para descartar outros problemas. Foi então, no atendimento ambulatorial do hospital universitário Charité, que me sugeriram preencher um diário da dor. Assim minha percepção de que tinha 2-3 crises por semana se transformou no registro oficial de +20 dias com dor mensais. Em março de 2022 fui pra clínica de dor em Kiel – e de lá fiz alguns registros no blog. No começo de abril eu saí de lá com dois novos tratamentos e cheia de esperança. 

Vida nova! Viajei com minha filhota para Londres e tivemos uma semana maravilhosa, com exceção de duas crises e alguns episódios de confusão mental que me geraram algum prejuízo em libras. Tudo bem. Processos. No mês de maio percebi a piora da minha visão e – talvez pelo estresse da situação – o quadro todo piorou. No mês de junho eu peguei uma licença médica na esperança de melhorar em julho. Em julho cheguei a ter 12 ataques em 7 dias, foi o pior de todos os meses, achei que em outubro estaria melhor. 

O sorriso amarelo depois de perceber que a chave de casa tinha ficado no outro extremo da cidade

E assim fui postergando o prazo que minha mente dava pro meu corpo melhorar, mês após mês, até entender que não sou eu quem imponho o tempo. A ansiedade melhorou, os sintomas também e, com ajuda de novos hábitos e aparelhos caríssimos (além de muito apoio, cuidado e paciência de amigos, namorado, mãe, filha e ex marido), fui conquistando a conta-gotas pequenos avanços… e junto a isso um acúmulo de cansaço e desesperança que me demanda uma baita energia pra manter o ritmo. Entre meditações, exercícios de desapego, gerenciamento de emoções, terapia, fisioterapia, massagem, escrita, estudos e muito mais a conta ainda não fecha. Existir me cansa, continuo exausta.

Eis que, em novembro, no terceiro atendimento ambulatorial no Charité eu chorei as pitangas assim como descrevi ali. Imediatamente me colocaram em tratamento com anticorpos monoclonais, uma medicação chamada Emgality que {como num passe de mágica ultra-tecnológico} fez meus sintomas ficarem mais espaçados, as crises mais raras e menos intensas. Foram apenas 16 dias com dor em novembro, sendo que os piores dias não me paralisaram e a fotofobia melhorou tanto que consegui sair sem óculos um par de vezes – pela primeira vez desde junho! E eu, com alguns esforços focados, ri muito, fiz muitas piadas, perdi menos compromissos e sai algumas vezes com a intenção de me divertir – com sucesso.

Por isso, há semanas eu vinha prometendo que escreveria sobre a melhora do meu quadro de enxaqueca, e embora eu tenha pensado em meia dúzia de ganchos e trocadilhos que me renderiam bons textos, continuei sem atitude. O último mês me deu ânimo para planejar coisas, olhar algumas outras e perceber com clareza o quanto eu estive mais debilitada do que conseguia vislumbrar. Executar tarefas simples e retomar atividades continua sendo um desafio que me consome. Preciso constantemente me lembrar que as falhas fazem parte do processo e que devo agir com compaixão por mim e, ao mesmo tempo, pelos que estão ao meu redor. 

Foi preciso esse vírus duzinfa me acometer de novo pra eu resolver retomar a escrita. Sim, porque dois anos depois de ser infectada pelo vírus que desencadeou uma reviravolta extra na minha vida, após 3 vacinas eu adoeci e testei positivo para COVID-19. Dessa vez o pavor não me atacou. Quando alguém passa por tanto em tão pouco tempo termina-se por ter atitudes e reações diferentes. Talvez porque com as vacinas e mutacoes os sintomas foram menos intensos, talvez porque eu pense menos, reajo menos e respondo aos estímulos de outra forma. Talvez porque meus hábitos mudaram e hoje tento retomar a confiança no meu próprio corpo – pois eu confio na força do universo que o criou.

O meu teste de COVID já negativou, no meio tempo o da 8 anos, devidamente vacinada, positivou. E vai passar também.

No momento não tenho nenhum prazo para “voltar a ativa”, mas sim um prazo bem longo para que eu possa voltar a analisar minhas capacidades com clareza. Até lá, vivo desacelerando os pensamentos, agradecendo pelo que já passou, aceitando “o que tá teno” e honrando as bênçãos que recebo. Passo por passo mesmo sem saber o que vem pela frente e nem como vou chegar.

Muito mais que DNA – O que me forma?

No emaranhado de sensações que os últimos dias me trouxeram, resolvi finalmente iniciar um projeto pessoal que me ajuda a elaborar meus sentimentos e relembrar minha resiliência. Guardo pra mim uma infindável lista de situações pessoais que um dia me geraram angústia, e hoje em dia não mais. E pensando na praxis dos meus ideais, resolvi agir de acordo com o que julgo coerente e organizar pensamentos com palavas; praticar a escrita curativa.

Atualmente, mais do que nunca, alguns se deixam enganar por pessoas articuladas pelo simples fato de terem tal dom. Se somamos isto à crença de que ‘respeitar os mais velhos’ é o mesmo que ‘não discordar’ ou ‘não criar conflitos’, temos como resultado: gente inteligente e respeitável caindo no discurso de gente articulada e mal intencionada – vide o episódio do lendário gen. Benjamin Arrola (haha).

Uma das pessoas mais articuladas que conheço, por exemplo, não passa muito tempo no mesmo círculo social. Um padrão de comportamento perceptível é escalar situações conflituosas usando detalhes improváveis para que no fim das contas esta pessoa possa se afastar com a *honra* de ser vítima. Convenhamos que a regra é clara: se alguém nunca erra no jogo da vida é sinal de que não está jogando certo.

Sinto muito pelos que caem na armadilha estética do texto, porém sinto ainda mais pelo autor que acredita no que diz. Vejam bem, eu venho de um lar caótico onde a comunicação era truncada e virava munição de guerra. A cada vida que me passa percebo tons de crueldade baseados em presunções e percepções de uma mente psicótica, narcisa com um fetiche pelo vitimismo – que no seu entendimento dá carta branca pra ações nada elegantes.

Cada dia mais dona desse narizinho

Embora dos meus quase 40 anos de vida eu tenha convivido com meu genitor apenas dos 0 aos 6 e dos 14 aos 19 anos, eu sou uma perfeita cópia dele em diversos aspectos. Não puxei só seu raciocínio lógico, a vaidade e o tino musical. Eu também puxei o dom com as palavras. A grande – e gritante – diferença é que eu não ajo como se estivesse acima das leis, do bem e do mal. Uso meu dom da escrita para aliviar minhas angústias e fazer auto avaliação – jamais com o fim caluniar outras pessoas para que eu seja vista como boa moça. Minha criatividade fica em cargo de suavizar a dureza do que vivo e de quem sou.

Um professor no primeiro semestre da faculdade nos lembrava de tempos em tempos que qualquer pessoa pode escrever qualquer coisa. Não há possibilidade que os livros, (atualmente posts ou tweets) se rebelem contra os absurdos sendo escritos. Tenho nas minhas memórias mais preteridas algumas historinhas que presenciei e vi com meus olhos que, em parte se contrapõem e em parte se sobrepõem aos devaneios que meu pai escreve. O que me resta aqui, na falta da capacidade de “desver” é o bom, velho e imprescindível pensamento crítico.

A maior parte do que escrevi que envolve meu pai eu guardei. Algumas coisas nem ousei transcrever pra não ter o desprazer de visualizar e re-materializar a dor. E, sendo a pessoa polêmica que ele é, qualquer opinião que eu emita e vá de desencontro às histórias que ele criou, deve desencadear suposições, assimilações e ataques à mim e minha capacidade de ser/dizer/responder por mim. Por medo da retaliação e pra nos proteger, por 20 anos eu optei por não cutucar a onça. Mas o que adianta dar paz à onça quando ela continua a atormentar?

Há pouco tempo, porém, ele resolveu pegar carona numa coisa minha, que só eu, meu namorado e minha mãe tivemos participação ativa. Ele usou minhas imagens e minha (falta de) saúde, forjou tomar rédeas fazendo parecer que 1- se importa 2- se envolve 3- moveu alguma palha pra que minha meta naquele momento fosse alcançada. Materialmente ele fez algo sim: assim como 90% dos meus essenciais e queridos contribuintes – numa vaquinha pro meu aniversário – meu pai enviou R$ 100,00 (cerca de 15€ dos +1400€ que recebi) para meus tratamentos de saúde. Minha tristeza, porém, não é sobre dinheiro. Pra mim nunca foi e jamais será. Me senti invadida pela ousadia do falso protagonismo de uma pessoa que um dia foi importante pra mim.

O que eu fiz com o sentimento? Retomei meus textos elucidativos sobre quem sou, quem somos, quem é quem na minha família e o que cada um colaborou para eu ser o que eu sou. Há comigo uma lista de grandes e ainda maiores traumas – protagonizados pela disfunção de uma família composta por um homem e três mulheres – algo que culturalmente e socialmente deixava nós, mulheres à mercê do ‘provedor’ – apesar de quem ter estado e ainda estar no nosso dia a dia provendo o necessário ser minha mamadi. 

Andrea Vinhal é avó, avô, mãe, pai, amiga, confidente, às vezes filha (not good, mom), sempre generosa, sempre ativa, sempre com a cabeça nas nuvens. Se presta a ser amiga e mãe também dos meus amigos, a quem ela conhece e trata com amor. Ela é um trator mais rápido que seu próprio pensamento e resolve problemas práticos com complicações absurdas, embora tudo esteja muito claro na sua cabeça. Tem seus defeitos, mas são bem distintos do que os olhos e a bagagem do do meu pai o permite ver.

Quando minha mãe se magoa com algo ela esbugalha os olhos e aumenta o tom e velocidade da voz, às vezes grita ou chora. Já meu pai quando se sente acuado ou ferido não demonstra. Sua saída de praxe é ofender e descredibilizar seu oponente – e quantos oponentes ele tem! Sempre está sendo injustiçado de algum lado, seja este o atendente do telemarketing ou um irmão.

Em 2003 (quando meus pais finalmente se separaram após um breve e turvo período morando na mesma casa sem se falar) eu fui morar com minha mãe e passei a ter cada vez menos convivência com meu pai o vendo, no fim da minha estada no Brasil há 6 anos, apenas em pontuais eventos. Eu evitava diversos assuntos para evitar o conflito e optei desde muito cedo por não me pronunciar, porque toda a energia me afetava muito. A última vez que ele gritou comigo foi em 2016, eu já era mãe e achei surreal, mas naquele momento eu já conseguia me afastar e entender que aquele descontrole era uma questão dele, e minha escolha era não me envolver.

Revolution
Contra canalhas só nos resta poesia.

Foi do meu pai que eu herdei o “overthinking”, a capacidade de arquitetar e refrasear. Já fui apta à reação às frustrações de forma acalorada e da transferência de responsabilidade aos meus ‘oponentes’, porém a metamorfose aqui não pára, e a cada dia me torno mais dona de mim e menos sucetível ao drama externo. Na última ou penúltima vez que me deparei sofrendo por atitudes do meu genitor, eu fiz questão de publicar uma carta de amor à todos aqueles que me amam de um jeito que compreendo, me cuidam e me querem bem, estando longe ou perto.

Em suma, mesmo estando numa mesma ocasião as pessoas vivem diferentes histórias, e aqui no meu espacinho eu escrevo a minha <3

Also… Registro aqui algo que acredito e levo como filosofia de vida: o mais rico dom quando se trata de se comunicar é a capacidade de empatia, com o desenvolver de discussões e conflitos de forma saudável, respeitosa e coerente. É a melhor forma de expandir horizontes e nos enriquecer como seres humanos e sociedade. Conflito não significa desrespeito, e a Gramática, meus amores, é acabamento… pura maquiagem.

Setênio 6 ano 3 – E Paz?

Tava buscando uma paz que eu jamais (nunca nunquinha) tive. Não consegui. Talvez porque ao sair da caixinha que aprendi a viver, sem querer, arrastei comigo um saco de culpa e com ela a dor de um luto; e os dois juntos pesavam aproximadamente 3 galáxias.

Dou minha palavra. Fui quem escalou com as unhas (e dentes?) o interior de uma garrafa de vidro opaco enquanto chorava um pranto tão tenro (cheio, tanto, farto, falho) que, por fim, puxar aquele saco (haha) teve uma mãozinha da densidade salvada (salgada, apegada, sentida, magoada, frustrada) daquele líquido. Lágrimas arrancadas de um ego em desconstrução, a lamúria do desconforto causado por um enredo improvisado ao invés do planejado.

A garrafa onde eu vivi foi se enchendo de lágrimas e eu fui ficando pequena, perdida, pesada, palavra. Imergi com muito esforço e vi por cima do gargalo um mundo que ninguém me apresentou. Seria ali minha nova morada. Normalizei o sentimento de medo, associando-o não ao perigo, mas ao mero desconhecido. (Coragem não é falta do medo)

Hoje eu sigo a filosofia da encruzilhada: minha alegria contém dor e minha tristeza se sustenta por graças. E não acabou: à medida que me permiti me acolher e me ouvir, meu corpo adoeceu e perdi o fio da meada. Onde ansiei por um galope num viçoso campo aberto tive uma sequência de quedas e tropeços (trancos e barrancos) por um caminho tortuoso, exaustivo, escorregadio e sintuoso.

Me entendo no quarto (vago, fraco, leve, vil) renascimento. A maternidade me desfez, migrar me oprimiu, separar me estilhaçou, adoecer me murchou. Mas nada disso me reprimiu: há uma alma que une o pó do que restou, e ela brilha, cresce, sente, chora e ri enquanto o ego se atrapalha. Parece que a alminha falou mais alto e, no momento, paramos de esperar e passamos a viver.

Ora, o ontem não me pertence, o amanhã me decepcionou tanto e tão repetidas vezes que o deixei. Sobrou o agora, que oscila entre brando, leve, bobo, triste, exausto ou dolorido, mas vejam só: ele sempre se vai, se esvai, se finda; já a alma fica.

Essa semana completo meus 39 anos. O branco da paz eu só vejo em sonhos. Venho aprendendo a desacelerar cada dia mais, olhar o caminho com compaixão, honrar a jornada com orgulho e arriscar saltinhos dançantes entre um e outro passo cambaleantes.

Civi na metade do sexto setênio sem paz, porém mais calma que nunca

Diários da dor Invisível – E agora, José?

Capítulo 4

Quando saí de Berlim eu tava com o coração apertadinho, do tamanho do meu dedão. Tava com medo porque ouvi dizer muito pouco sobre o trabalho da Schmerzklinik Kiel, a maioria boa, porém ditas por profissionais da saúde na Alemanha, uma categoria de profissionais que geralmente não nos entendem.

Logo que cheguei na Alemanha ouvíamos muitas reclamações quanto ao sistema de saúde. Até aí eu me pergunto: quem nunca ouviu reclamação sobre o sistema de saúde no Brasil? It is what it is: saúde é assunto delicado, médicos não são Deuses, a medicina não é ciência exata e nossa responsabilidade acaba por ser anulada por uma infinidade de inseguranças que aprendemos a ter sobre o nosso próprio corpo.

Ao invés de sermos estimulados a explorar e conhecer esse sistema complexo que é o corpo que habitamos, nós passamos a terceirizar toda a responsabilidade de entendimento pra profissionais da saúde. E não há de ser – aqui o médico fala pra mim: é você quem vai saber, vai observando, sente como está… Me orienta mas me passa a responsabilidade. E o tempo todo batendo na tecla – só remédio não adianta.

Na Schmerzklinik temos práticas baseadas em pesquisas recentes sobre a enxaqueca, uma série de especialistas e, o que me chamou a atenção: tem muito mais vivência, convivência e troca moderada por psicólogos. Os médicos vem e conversam por alguns instantes, os psicólogos estão em praticamente todas as atividades.

E dentre a gama de novas informações que tive contato aqui, destaco uma série de aulas com técinicas para conseguirmos identificar e eventualmente parar: autojulgamento, falta de auto confiança, pensamentos ruminates, [edit] como dizer não e afins. Técnicas que ouvimos aqui e precisamos compreender, assimilar e colocar em prática.

Me pergutei por que será que temos exatamente essas 5 aulas especificamente para 5 ‘problemas’, A explicação – ou parte dela – veio numa palestra do idealizador do programa, um médico doutor (de doutorado mesmo tá, haha) que tem dedicado sua vida ao tema. Em determinado momento ele menciona que ha um padrão no raciocínio das pessoas que tem enxaqueca como doença primária [não um sintoma para outra doença]: normalmente são pessoas com raciocínio rápido e que fazem muitas interligações dentro de cada raciocínio, tem uma dificuldade incrível de ir de A a B sem passar por pormenores, desvios e fazer projeções [desnecessárias?]. Ele dá dois exemplos e ambos me caem como uma luva.

No fim ele diz algo como: vocês precisam aprender a pensar menos e mais devagar. E eu [novamente me refirerindo à minha oração da manhã] sempre peço: “…que traga serenidade, simplicidade e suavidade aos meus pensamentos…”, porque siiiiiiiim, são complexos, pesados, difíceis, complicados e atrapalham meu convívio, meus prazos, a possibilidade de simplesmente viver o dia sem medir. Falei disso aqui e aqui.

O Doutor disse também outras coisas maravilhosas que esse raciocínio emaranhado pode nos possibilitar – afinal num pode ser só ruim :D

E agora? A festa ainda não acabou. Estou a 3,5 dias de ir pra casa, ha 13 aqui. Mantive a mesma média de ataques de enxaqueca de quando estava em casa, tive uma complicação nos pés causada pelo tratamento, que foi interrompido e substituído, aprendi técnicas de mindfulness pra driblar algumas pendengas e um punhado de outras coisas que podem ter um impacto positivo com o passar do tempo no meu quadro.

A realidade é que, ao contrário do que eu pensava, não tinha nenhum pó de pirlimpimpim pra passarem em mim e eu não vou chegar em casa completamente curada. Agora é ajustar a rotina, a alimentação, os horários, aguardar o novo tratamento fazer efeito e ter paciência, sabendo que há possibilidade de diminuirmos tanto a intensidade quanto a frequência das crises, de acordo com o médico-chefe, em aproximadamente 9 meses.

Escrevo com lágrimas nos olhos, parte por ter a dádiva de poder estar aqui onde parecem entender o que se passa comigo – e também pela alegria de estar confiando no Universo. Afinal, sabendo que não se trata de uma ciência exata, os 9 meses podem ser 9 dias, 9 semanas ou – esperamos que não – 19 meses.

Pá.Ci.ên.Cia.

Que saudade de casa <3

Diários da dor Invisível – (Des)necessários Devaneios, Desatinos e Desapegos sobre

Capítulo 3

Eu tive minha primeira crise de enxaqueca aos 19 anos, às vésperas de uma mudancinha de rotina – meu então namorado ia se mudar pra outro continente em um par de dias. Também estávamos no verão do Rio de Janeiro, fazia muito calor e de repente o tempo fechou e bateu um vento muito frio. Quase duas décadas depois eu sei que mudanças bruscas de temperatura e pressão podem ser gatilhos para os ataques.

Anos se passaram. Me lembro de crises repentinas nas quais não conseguia me comunicar, não entendia o que me diziam e não conseguia falar. Uma média de duas crises por ano, costumava dizer. Por vezes nenhuma no ano. Em 2016 mudei pra Alemanha e após 2 anos tive algumas crises em um mês – o que já tinha acontecido outras duas vezes no Brasil, sempre e momentos de muito estresse. Em 2018 eu tive dois (!!) burnouts. [Ou não cheguei a me recuperar totalmente do primeiro.]

Eu venho de um país e – mais especificamente de um estado que ultravaloriza o sofrimento e a culpa como moedas de troca para o sucesso. O mito da meritocracia ecoa forte, o “temor divino” limita potencial criativo. E eu, que cresci andando na linha, ainda passo meus dias permeada por uma culpa que se enraizou em mim e se exacerbou na maternidade – sigo procurando meios de me desculpar e compensar os erros que sequer cometi.

Somem isso ao viralatismo que aprendemos como filhos de um país colonizado, o jeitinho fofo mineiro ‘desculpa qualquer coisa’ vivendo aqui no “berço da cultura”. Porquê as aspas? Ora, a cultura só é ‘classica’ porque os detentores da mesma literalmente destruíram, roubaram e apagaram Maias, Incas e outros incontáveis povos originários – e continuam abafando essas e outras centenas de culturas milenares.

Volta pro meu recorte pessoal aqui. Eu falo algo na reunião do trabalho. A pessoa do meu lado fala a mesma coisa em nem-tão-rebuscado alemão, mas outra construção frasal, com partículas e sufixos que eu não-nativa não sei usar. Na próxima vez entro muda e saio calada – e foi assim por 18 meses. A migração te despe dos privilégios que você aprendeu a ter. Aqui eu sou mais uma imigrante latino-americana com sotaque. Bem sucedida, sim. Com um esforço 3x superior ao colega do lado? Claramente. Isso foi só um dos inúmeros motivos pelos quais – surprise surprise – a cabecinha pifou.

Amo Berlim e me dou ao luxo de torcer o nariz pra detalhes do choque cultural que antes apenas me admiravam. Seria o virote louco da minha enxaqueca de episódica pra crônica um produto do desencanto? A tristeza do apagamento da leonina? O cansaço de bradar que quem é do lado de lá merece ter a dignidade que se tem aqui? A frustração em ver que a colega que tá na vaga que sonhei ficou pasma com a qualidade do meu trabalho? Será minha dor um reflexo da ferida colonial? Ou foi o Covid? :)

O estresse faz parte da vida de todo mundo. Como lidar com ele é que são elas. No momento eu estou inundada na frustracão do recomeço diario da vida que quis e não sonhei – ou sonhei só que não quis. No dado momento trocaram meu tratamento profilático da enxaqueca pela segunda vez em menos de 60 dias – a última por complicações causadas por Long Covid. Estou num hospital de [ponta] cabeça (hehe) e passei 3 dias na iminência de transferência por conta de uma doença que me ataca os pés. A multidisciplinaridade tem limtes. Todos temos. [Eu tô aprendendo a me posicionar sobre os meus.]

Um dia ouvi que o contrário da vida é o desencanto. Hei de criar pausas e espaço pra caber encanto e beleza. E como eu costumo dizer após minhas orações da manhã: Que meu coração esteja livre de angústia e medo e cheio de coragem e amor. Está feito, está feito, está feito, está feito.

E que venha a Primavera daqui, e com ela o renascimento da Deusa e novos caminhos. Feliz equinócio.

PS: Vai lá assistir a Ritinha.

Diários da Dor invisível – Tratando a Enxaqueca em Kiel

Capítulo 2

Cheguei à Baía de Quiel na Quinta-feira passada, Faltavam 18 Minutos pras 10, que era meu horário de apresentação no hospital, ou ‘Clinica de Dor’ em livre tradução. Gmaps me diz que sao 30 min de ônibus ou 15 de carro. Compro um café, tomo um Taxi. No caminho o motorista pergunta se tenho enxaqueca, conto que sim e vou às lágrimas quando digo estar cansada. Ele fala pra ter esperança. Bem… leia o post anterior.

Chego à Schmerzklinik e me apresento às 10:04. Quem mora aqui sabe como na Alemanha TUDO é papel. Me deram muitos papéis. Contrato, explicação, cronograma, senha, QR code, livreto, planilha, questionário, lista, sei lá mais o que e tudo tava muito difícil. Sobe aqui, vira à esquerda, não se preocupe, minha colega vai te direcionar, pode deixar a mala, assina aqui, terceiro andar, volta no primeiro, jantar no segundo, a lista do almoço está à direita, vão levar no quarto (oi?)… eu só apertava ozóio – a essa altura concordar com a cabeça engatilha enxaqueca.

Fui falar com o médico na hora do almoço e a sala estava muito clara. Pedi pra pararmos depois de algum tempo porque estava com fome e a claridade estava forte demais pra mim, fiquei atordoada. Ele disse que voltaria pra me visitar amanhã, embora não o façam às sextas. Dei uma volta fora do prédio. “Parece Münster”, pensei.

Sexta-feira foi outro dia com o “freio de mão puxado”. Entendendo quase nada, pedindo pra repetir, óculos de sol na cara. Tomei uma medicação que indicaram pra retardar a dor e melhorei. Tive um fim de dia razoável e início de sábado bem bom. O fim do sábado porém não perdoou…

Pois bem, como manda o figurino: tive a bendita enxaqueca no hospital de enxaqueca. Fiquei zureta como uma barata tonta, enclausuradinha no breu achando que tava fazendo algo muitíssimo errado [aguardem o próximo post]. No Domingo pela manhã tomei a medicação indicada pelo médico e desde então passei a entender o que se passa ao meu redor com certa suavidade e uma facilidade razoável pro padrão pessoa-latino-americana X Alemanha. E assim que entro na normalidade percebo que o quadro dos dias anteriores me dava acesso a uns 15% da minha capacidade de raciocínio, quiçá 20%.

Aqui temos Seminários sobre nutrição, técnicas de relaxamento, treinos para fortalecimento das costas, yoga, Qigong, gerenciamento de estresse, Psico e Fisioterapia mais uma gama de outras atividades opcionais. Além disso, os altamente recomendáveis/mandatórios: exames de pressão, laboratoriais, acompanhamentos médicos, preenchimento da tabelinha com indicação do nível de dor e DESCANSO – já que dentre os principais fatores dentre os inúmeros desencadeadores da enxaqueca… um deles é o estresse.

Há dois dias consigo me alongar quando acordo. Um pouco porque ainda fico levemente zonza ou unbalanciert, como dizem aqui. Ontem (Segunda-feira) consegui fazer um pouco de esporte, hoje mais um cadiquim. Repassei a papelada que recebi na Quinta-feira e entendi tudo o que vi. Temos uma vista lindíssima do prédio e a paz e o silêncio reinam quase o tempo todo. Várias informações muito relevantes já foram pras minhas anotações e uma pequena luz no fim do túnel se acendeu, outras se apagaram.

Falei pro médico hoje que ele está a par do meu processo completo, pródromo, aura, ataque e o que ele chamou de “post migraine honeymoon”. Nos últimos 8 meses, porém eu vinha pulando a última fase ou a substituindo por ansiedade/medo do próximo ataque.

Acolhimento? Nem tanto. Validação? Sim. Atenção? Nhé. A propósito, agora com o cérebro em algum lugar acima dos 80% da capacidade – não parece Münster ne de longe. Nem de cabeça pra baixo.

E continua…

pensamentos, coisas bonitas e histórias